Sobre projeções e parecer autista

Afeta\
3 min readApr 26, 2022

Por Maira Begalli, COO da Rede Afeta\

Estava em uma reunião de trabalho quando uma pessoa comentou: “às vezes eu tenho um modo autista, paro e fico olhando para o nada”. Imediatamente pensei: “Autistas não olham para o nada, estão processando o todo”. Eu sou asperger, estou no espectro do autismo e sei disso.

Temple Grandin está no espectro do autismo. Ela, “olhando para o nada” — no caso “o nada” era um ecossistema complexo de criação de gado — revolucionou os modelos da pecuária. Temple era socialmente esquisita, improvável, inapropriada.

Meu cérebro processa tudo de forma complexa o tempo todo, e me permite sentir cores, o cheiro de músicas, prever as mudanças de temperaturas. Mas não compreendo muito bem as dinâmicas sociais de humanos, apesar de ter dito uma frase completa com poucos meses de idade, em um elevador de shopping antes mesmo de dizer “papai” ou “mamãe”.

Como Temple, eu também sempre fui muito “esquisita”. Cresci em uma chácara e desde bebezinha passei a me comunicar com animais. Tenho toda minha noção de socialização estabelecida com base no comportamento canino e sou extremamente grata por isso.

Ao longo dos anos, acreditei que se conseguisse performar como as pessoas esperavam seria menos agredida. Mas, isso me custou muito caro pois me forçava a fazer coisas — desde usar roupas, aceitar trabalhos, ir a lugares e socializar — para que não sofresse violência na escola (por parte de alunos e professores), no trabalho, e na minha própria família.

Poderia falar da minha “superqualificação”, da minha “extensa experiência profissional”, ou da minha “completa formação acadêmica”. Ou no extremo oposto sobre minha aparência de 20 anos, sobre não parecer autista e/ou muito menos uma Doutora.

Mas, minha jornada não é sobre isso. E, sim, sobre o fato de ter que lidar com questões de saúde físicas e psicológicas continuamente e ainda assim “ter que performar” para ser aceita.

O que se espera quando falamos sobre inclusão e diversidade?

Tudo bem, ter alguém trabalhando com você, sob “essa condição” — desde que você esteja dentro do comportamento padrão.

OU

Precisamos colocar pessoas em caixas ou trilhos?

Atualmente trabalho no planejamento e gestão de projetos e também atuo como cientista/pesquisadora. E, em qualquer projeto ou atividade, me preocupo com a condição que meus pares estão realizando suas tarefas.

As pessoas têm e vêm de contextos e situações diferentes. Tanto de suas vidas, como de um dia específico. Ninguém precisa se agredir para fazer uma entrega, seja: trabalhando doente, sendo escondendo ser LGBTQIA+, usando uma roupa menos colorida ou mais formal, falando exatamente o que o outro espera, alisando ou pintando seu cabelo, e complete sua lista.

Outro dia, uma conhecida escreveu que não nos relacionamos com as pessoas, mas com os desejos delas. Desejos em última instância são projeções — que também acontecem nas relações de trabalho. Quando assumimos e comunicamos que desejamos um ambiente de trabalho mais diverso, precisamos nos atentar para isso. Pessoas diferentes vivem e agem diferente, e na gritante maioria das vezes esse contexto não corresponde às projeções de quem contrata.

Não criar expectativas pré moldadas para sustentar um discurso arruinado é nosso grande desafio como humanos em evolução. Já que não se trata apenas da “inclusão no mercado de trabalho ou consumo”, ou uma “vaga assistencialista”, mas de ressignificar, reorganizar modelos e estruturas, fazer tudo novo para não replicar os mesmos processos de repetição.

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